Depois de 5 anos nessa mesma onda penso que encontrei uma solidão
pior que as tardes de domingo chuvoso. 5 Anos da mais que um doutorado, e
doutores podem falar com propriedade das coisas. Gastei 5 anos e começo a
aceitar que te perdi. Repito tanto a fração desse tempo, para me convencer de
que não foi ontem.
Nada é mais feroz que a solidão que me aplaca as 2 da manhã,
quando preciso fechar a janela para dormir, e o barulho do arrastar dos ferros berra
e ecoa pelo quarto vazio. Sinto também uma vergonha infinita e um medo de
acordar os vizinhos. Menos o casal morador do apartamento de cima, que trepou a
noite toda e agora deve estar desmaiado dormindo, um na curva do corpo do
outro. Penso em dar minha cama para eles, talvez seja menos sexo deles entrando
pelo meu quarto a noite, se usassem minha cama firme, sólida e quase cerimoniosa.
Menos inveja eu teria, e menos gatilhos para essa minha memória já tão armada.
Esses móveis que estão aqui ainda, só compõe o que falta. Não
preenchem o ambiente, mas indicam as ausências. Essa cama que quero dar para os
vizinhos, que sustenta meu corpo insone, e que minha agonia não preenche, o
criado de madeira escura, que você gostava tanto, que ficava do seu lado do
quarto, e ainda hoje tem folhas em branco na primeira gaveta, e a caneta já sem
tampa, preparada para ser acionadas na urgência das listas que insistiam em te chegar
no silêncio dos primeiros minutos do sono, a luminária que você acendia, mas não
sem antes colocar sobre ela aquela sua blusa de dormir, desgastada, cheia da essência
do seu corpo, que eu provavelmente já teria tirado de você e jogado pro alto, mirando a
quina da cabeceira. Brincadeira nossa antes trepar mais gostoso que os vizinhos
de cima. Você tentava com a blusa, improvisar uma
cortina e proteger meu sono da luz, inutilmente, porque eu sempre acordava,
mesmo que só para vigiar aquela curva linda que suas costas faziam quando você
se virava na cama para escrever no criado mudo. Tentei fazer pano de chão dessa
camiseta umas 300 vezes nesses últimos anos, mas nunca consegui. Ela ainda
dorme debaixo do meu travesseiro surrado. Aquele que você sempre apertava entre
as pernas quando dormia sozinha, só para me provocar a nunca mais fazer uma
viagem de negócios. Hoje nem com a insônia me arrependo dos minutos de sonho que
troquei pelos acordados olhando pra você. Você me via te olhando, pedia
desculpas e justificava suas listas me contando que essas coisas nunca te vinham à cabeça entre as prateleiras
de do supermercado. Se eu conseguisse abrir essa gaveta, usar essa caneta, talvez
não comprasse tanto, e sempre o que sobra, e nunca o que falta. Mas tenho paúra de achar ainda alguma coisa com a sua letra lá, e eu não queria que fosse mais
um não, ou outro mal entendido. Desses causados pela expectativa frustrada.
Melhor vender esse criado mudo para o vizinho do apartamento da frente.
Tenho feito varias listas para ocupar a mente e lutar contra
esse pensar que ontem enquanto fechava as janelas, pisou-me o peito e me fez sufocar.
Não uso papel e caneta, mas esse celular novo que comprei depois de joguei o
meu na parede, naquele dia de chuva em que você me ligou para dizer que não
dormiria em casa, nunca mais. Ontem, aliás, choveu á cântaros de madrugada.
Fiquei olhando o jardim do prédio apanhar das pedradas que a chuva trazia. Não
sou só eu quem sofre pedradas em dias de chuva. Fiquei solidário a ele, mas
nunca soube mexer na terra, então vou deixa-lo morrer até que alguém o salve.
Também nunca soube me salvar.
Poderia dormir de janela aberta, mas prefiro fecha-la para
reduzir o mundo a esse quarto. Se aqui dentro eu fico pequeno, fora daqui
inexisto, e inexistir para si mesmo no meio da rua é coisa muito perigosa,
porque na esperança de ficar invisível achamos que podemos também atravessar, e
assim, acabo sempre com a cabeça contra um poste qualquer ou contra as placas
dos pontos de ônibus, ou pior, contra a realidade de estar só.
Minhas manhãs viraram coleções de protocolos, rotinas e
coisas para matar o tempo. Levanto da cama, ligo a TV logo para que as vozes
preencham o ambiente. Disseram funcionar e eu obediente com receita de qualquer
remédio faço, religiosamente, um copo grande de água e TV ligada num canal
qualquer, um programa qualquer que nem vejo. Exceto quando tem aquela menina de
sotaque gostoso que ensina receitas malucas com coisas que não sei como usar.
Um dia ainda faço alguma coisa num papel manteiga, sempre quis. Soa legal falar
que vai colocar no papel manteiga e por para assar. Você também não sabia
cozinhar com papel manteiga.
Tomo banho rápido, e desligo o chuveiro para
ensaboar, porque economiza água, que está acabando, e também porque adoro a
cobertura branca de sabão pelo corpo. Da um quê de pureza, e talvez eu esteja
correndo mesmo atrás de perdão. Desenho coisas com a espuma.
Faço
café ritualisticamente, conto as xícaras de água, as colheres de pó, e ele tem
sempre um sabor diferente, todos os dias, um paladar diferente que sai
completamente dos meus planos certinhos. Uma deliciosa e quente surpresa de
manhã. Tentei decorar o café que fiz naquele primeiro dia em que amanhecemos. Transamos
tanto que acordei com o corpo irritado, e passei o dia em roupas bem largas. E
precisamos de muito café para acordarmos, mas não tínhamos dormido, a verdade é
que felicidade de sonho é a vida acordada, ao pé do ouvido, olho no olho, e um
café passado sem pressa de sair.
Quando saio de casa, boto os fones de ouvido para
ajudar a ficar invisível, e dai pelo caminho vou inventando histórias para o
que vejo. Até passar pela porta da lotérica, e ver o valor acumulado para o
primeiro prêmio. Gasto todo o dinheiro mentalmente várias vezes até que a hora
de voltar para casa me tire do voo. Hoje não havia nenhuma premiação especial, nada
acumulado para o primeiro prêmio, e nenhuma novidade pelo caminho.
Há 5 anos você foi embora com uma desculpa esfarrapada dada
ao telefone em uma noite chuvosa de janeiro. Nunca te perdoei por isso, e nunca
me perdoei por não te deixar passar. Acho que quando voltar para casa hoje vou
dar a cama para os vizinhos de cima, o criado para o vizinho da frente, a
camisa vou queimar, e a esperança vou comer num assado com papel manteiga, e meu corpo vazio, darei para a janela.